Pareceu-me pertinente, ao prefa - ciar os textos dos autores do presente livro, trazer a citação de Pierre-André Taguieff em sua reflexão sobre racismo. Francês, estudioso das ciências humanas (filosofia, história e política), mas, tam - bém, conhecedor dos percalços da Fran - ça, quer na colonização do Continente Africano, quer como vítima da ocupação alemã durante a Segunda Guerra Mun - dial. E seus estudos sobre racismo e as diversas conceituações e historicidade do fenômeno nos trazem muitos elementos de reflexão sobre a complexidade em identificar cada um de seus movimentos no seio da sociedade.
Tema central da presente obra, os estudos sobre racismo permitem-nos uma reflexão apurada. E porque estamos ainda nas fases primeiras de estudos e reflexões sobre o racismo e como se pro - duz e reproduz em nossa sociedade, via de regra deixamos alguns conceitos ou apreensões carentes de maior inflexão sobre a historicidade. Sobre o conceito de racismo, creio, há que termos os mesmos parâmetros de compreensão e identifi - cação, digamos, quase universalista. Ou seja, é necessário que, quando estamos tratando desse fenômeno, tenhamos o sentido ou o espaço que o tema está sendo tratado. Será que somente a palavra trará o sentido do fenômeno nos diversos continentes do planeta? Ou somente para uma ou outra sociedade, ou para nós no Brasil?
Da mesma forma, o trato e os estudos sobre relações raciais e direito, em que os valores raciais são racistas, estarão ou deverão buscar os conceitos que nos levem para soluções de avanços na luta antirracista. Esse prólogo nos leva a pensar as ferramentas que estão à nossa disposição ou deverão ser criadas para promover mudanças culturais, legais e ideológicas sobre os nefastos efeitos do racismo e da discriminação racial.
O livro aqui apresentado traz, pelos autores e autoras, discussões que levarão o leitor a pesquisar e revisitar temas importantes, cuja conexão com o direito e as relações raciais certamente serão de grande contribuição para o conhecimento das instituições jurídicas. Nosso país, malgrado os esforços e energias seculares de negros e negras para denunciar e exigir tratamento igualitário para a população negra, continuamos, nessa segunda década do século XXI, carentes de políticas públicas e de efetividade da legislação nacional que atendam às demandas por igualdade racial e justiça social para a população negra e, mais ainda, que sejam recebidas pela sociedade e todas as instituições do estado como pertinentes.
A violência contra a mulher tem suas raízes no trato espúrio do período escravista no Brasil dado às mulheres escravizadas. Os estupros e violações sexuais perpetrados por senhores escravocratas e mais são reportados em nossa história pelos pesquisadores e historiadores. A violência à maternidade daquelas mulheres que tinham seus filhos retirados de seu convívio ou mal cuidados por suas mães em razão do exercício do trabalho de ama de leite na família branca estão em nossa história. E não só. Vencido o regime escravista por lei, os movimentos e violências continuam contra a população negra, pois as mulheres eram/são os “objetos” da lascívia e do poder e, mesmo em eventuais relações de afeto, o homem branco não era/é compelido, nem moral nem legalmente, a ter responsabilidade sobre aquelas mulheres, muito menos sobre sua prole que, certamente, era filha de pais brancos que saíam irresponsavelmente do exercício da paternidade. Assim como com as mulheres negras, a violência fragiliza as mulheres brancas no inconsciente coletivo machista, cuja feminilidade tanto é negra quanto é branca ou indígena.
A discussão sobre esse tema, aqui trazida, nos traz muitas certezas e nos provoca para tomarmos partido contra qualquer tipo de violência contra a mulher, em especial em relação aos seus direitos reprodutivos. No mesmo ritmo, as vítimas do tráfico nacional e internacional de mulheres, no qual as negras acabam sendo super-representadas no seu universo, mas violento e inumano para todas as mulheres. Na reflexão, o artigo apresenta, para além do tráfico para fins sexuais, o mesmo movimento nas relações de trabalho, alertando para que diferentes agentes tenham atenção.
Novamente estamos diante dos efeitos nocivos do racismo e da discriminação racial e o papel das instituições que, historicamente, têm-se se aliado à exploração muito mais do que buscando soluções, corroborando os conflitos de raça e classe.
Desde o período colonial, passando pelo Império e se acoplando à República – Velha ou Nova ou... Contemporânea –, as relações afetivas entre brancos e negras dão frutos com frequência suficiente para o Estado escravista, com a benesse do Direito e outras instituições imperiais (depois da República), acomodarem esses frutos em uma categoria que deixasse explícita a origem africana, mesmo para os negros claros, identificando-os como “pardos”. Ao longo da história da formação populacional brasileira, essa “classificação” sempre serviu para separar a população negra em detrimento da hegemonia da população branca, detentora de todos os privilégios sociopolíticos e econômicos, sem o perigo de haver qualquer confusão que minimizasse seu poder branco com as origens europeias definidas.
Nessa publicação, o autor faz uma reflexão de real valor, em especial na disputa racista para acomodar novamente os brancos para acesso às políticas de ação afirmativa.
Direito e Estado, desde os primórdios de nossa vivência neste continente com a invasão portuguesa, esteve sempre como reguladores e legitimadores das violências perpetradas contra os indígenas – moradores originários que foram desconsiderados em sua humanidade e “confundidos” com a natureza, que a ambição mercantilista destruiu, no limite de seu interesse e lucro. Terras, subsolo rico, flora e fauna, tudo destruído, junto com a população invadida. Legislação portuguesa e governantes por ela legitimados.
As violências portuguesas no Continente Africano (para me fixar no Brasil) trouxeram-nos sequestrados: povos, etnias, plebe e realeza, todos juntados em navios “negreiros”, tumbeiros com trajetória das mais violentas e assassina da história moderna, tudo à luz do Direito e do Estado.
Carece, de fato, que as reflexões aqui trazidas sobre o papel do Direito e do sistema penal, em particular, sejam realizadas e publicizadas como referência fundamental no combate ao racismo, o institucional em primeiro plano. O sistema judiciário, os julgamentos realizados a partir de valores raciais racistas têm auxiliado na compreensão popular da inferioridade e desajuste social da população negra, com recorte especial na juventude negra e nos homens negros em geral.
Pela pertinência de estudos, seminários e publicidade dos temas tratados, esta obra deve estar presente nas diversas áreas de conhecimento da academia brasileira e, também, com a respectiva adequação, na formação escolar em todo o sistema educacional brasileiro.
O sistema jurídico, quer nas searas do Executivo ou do Legislativo, a seguir sua paradoxal atenção à questão do racismo e discriminação racial no cotidiano de nossa sociedade, é contemplado na obra. Assim, o sistema jurídico, ao tempo em que apresenta regras e programas que estão dirigidos para o combate às ações discriminatórias, quer com programas e ações antidiscriminantes, quer com aperfeiçoamento do cabedal legislativo antirracista, editando leis que podem minimizar os efeitos nefastos do racismo, deixa a desejar quanto à implementação das políticas de combate ao racismo e quanto à eficácia do sistema legal que, ao tempo em que repassa a ideia de busca da igualdade material em nossas relações públicas e privadas, promove leis falaciosas que são aplicadas quase que exclusivamente sobre a população negra, em ações das polícias, e de todo o sistema penal. Estão aí a Lei de Drogas e os projetos legislativos para potencializar a busca por “traficantes”, quando os verdadeiros estão muito bem protegidos em espaços de poder econômico e político. É o que trazem as autoras com as discussões e críticas aos projetos de criminalizar mulheres em seu direito reprodutivo.
Um tópico especial, já aqui mencionado, o do sistema penal e das tentativas do Conselho Nacional de Justiça. O primeiro é, talvez, a soma de instituições que mais adequadamente promovem e asseguram o racismo e a discriminação racial em suas ações, com a manutenção da ideia de negrom forjada desde o século XIX, como indivíduo naturalmente predisposto à subserviência, ao crime, e impossibilitado de assumir papéis sociais de relevância por sua natureza, por seu pertencimento racial. Daí que o próprio sistema burla os princípios constitucionais e legais do Direito Processual Penal para realizar os pré-julgamentos, utilizando-se dos valores raciais racistas para aplicar a lei, trazendo aqueles valores para estabelecer a sua interpretação.
Quanto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), suas administrações têm procurado, ao longo de sua existência, muito a partir de juristas negros e negras e das demandas específicas do movimento negro, com pressões internacionais das convenções internacionais de combate ao racismo, trazer para o contexto da administração da justiça a necessidade de estudos e pesquisas para minimizar os efeitos nocivos e recorrentes do sistema de justiça. O estudo sobre equidade racial no Poder Judiciário promovido pelo CNJ trata do tema com a importância que deve. Falar sobre a diversidade sexual da população negra e de como são intensificados os comportamentos racistas nesse segmento social amplia a abrangência e a importância deste trabalho. A adoção selecionada em detrimento das crianças e adolescentes negros, que são proporcionalmente mais frágeis nas relações familiares, complementam os estudos aqui tratados. Todo os temas trazidos na presente publicação são relevantes para o estudo das relações raciais no Brasil. É importante que estudiosos promovam e publiquem seus estudos e pesquisas para incrementar as esperanças negras neste país, com o fim de consolidar uma sociedade democrática e igualitária para toda sua população. Deixo, por último, a questão trazida nestes estudos sobre os refugiados, porque me remetem para o tráfico negreiro, para os sequestros e imposições violentas de retirada de pessoas de sua terra, de sua cultura em razão da perene invasão ocidental, cooptando autoridades e armando crianças, jovens e adultos com suas armas letais, para fomentar os conflitos internos, que em toda as sociedades sempre existiram e sempre tiveram bons finais, quando não “protegidos” pela força externa capitalista e racista. Senhoras e senhores, autores e autoras desta bela obra, foi um prazer e uma honra poder participar com algumas considerações que, no desejo, somente pretendem trazer à luz os estudos e pesquisas aqui relatados.
Dora Lucia de Lima Bertúlio
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